Soldado Souza estava lotado no posto policial de Exú há algum tempo. Desde o dia que botou o pé dentro o posto já deixou claro a que tinha vindo: dormir nas celas vazias. Souza, ou melhor, Soldado Souza “porque sou Otoridade, com O dos grandes” - como ele costumava dizer, era o símbolo máximo da preguiça e covardia. Cabra magro, franzino e amarelo, ostentava um tosco bigode composto por apenas 8 fios de cabelo, numa tentativa de parecer mais intimidante. A farda, uns dois números maiores do que devia não ajudava. Parecia, como se dizia a boca pequena pela cidade, um palhaço dos circos sem lona.
Apesar de tudo Soldado Souza era um cara bem quisto. Ninguém jogava-lhe na cara o banana que era, todos entravam no jogo e fingiam dar alguma importância a sua “otoridade”. Vivia na mesa dos bares, jogando conversa fora e bebendo fiado. O mal do Soldado Souza, além da preguiça, era a “marvada” cana. Quando bebia ela virava outro homem, e esse novo homem sim era corajoso, bravo e... mentiroso que doía. Depois de umas 5 lapadas da branquinha Soldado Souza era só valentia. Contava como, sozinho, botou pra correr toda uma gangue de assaltantes de ônibus de sulanqueiros correndo de jumento, com o facão entre os dentes, atrás deles por dentro da caatinga. Contava que cruzou o velho Chico a braçadas para salvar um velhote que se afogava na outra margem e que, na volta, ainda nadando, havia pego com as próprias mãos um peixe tão grande que quase podia ser montado. Quando começava a dizer que era tão homem, tão homem, que quanto tinha sede mascava mandacaru e cuspia os espinhos em quem lhe olhasse feio o povo já sabia que era pra tomar a garrafa do pobre Soldado Souza. Pena que naquele dia resolveram deixar ele beber um pouquinho mais.
- Aí, digo mesmo, que não sou baú, peguei a Roseli de jeito, virei ela de perna pro ar – Soldado Souza fez o gestual com as mãos – abri as pernas delas, deis dois tapas no xibiu pra tirar a poeira e caí de boca...
A multidão fez cara de espanto – mas em verdade segurando o riso pois naquela altura rir de Souza era querer fazê-lo brigar e até Tenorinho, filho caçula de Dona Inalva, era capaz de dar uns tapas naquele amarelo quando ele estava sóbrio. Imagina bêbado assim.
- Souza... – Interrompeu Seu Juca, dono do Bar “Gato Pingado”.
- Soldado Souza! Eu sou Ototidade, Otoridade.
- Vossa excelentíssima Otoridade Soldado Souza...
- Agora ocê ta falando com o respeito que um homem da minha qualidade merece... continue...
- Eu fosse o Sr, meu ilustre, ia pra cara tomar um banho e dormir pra não perder a hora amanhã.
- E o que tu tem com minhas horas, cidadão? Posso saber?
- Homem de Deus, to falando pro teu bem. Capitão Sampaio ta na cidade e se tu chegar depois da hora...
- A Otoridade aqui sou eu. Porra de Capitão Sampaio. Aqui quem manda é o Soldado Souza, o cabra mais macho que já baixou nas bandas de Exú.
- Rapaz, fica na tua que cidade pequena é de lascar...
- Que lascar que nada. E tem mais, se o tal do Sampaio vier pra riba de eu vai levar um rabo de arraia e beijar o chão. E tenho dito.
E assim, Soldado Souza se enterrou com glórias porque na mesma noite essa conversa chegou aos ouvidos do Capitão Sampaio.
Na manhã seguinte Soldado Souza, que entre os outros soldados era chamado apenas de amarelo, chegou ao posto meia-hora atrasado, com cara de barraca, ainda cheirando a cachaça dentro de sua farda amarrotada. Já esperava levar uma mijada do Capitão Sampaio e ficar responsável por varrer o posto durante toda semana. Ele entrou no posto, chutando o barro vermelho, já suando como um porco, de cabeça baixa.
- Mas veja só se não é o meu soldado mais valente.
Souza levantou os olhos e viu o Capitão Sampaio, ali, parado, cercado de seus companheiros de farda, de braços abertos e com um enorme sorriso no rosto. Com quem o Capitão estaria falando? Souza olhou em volta. Ninguém além dele ali na porta.
- Entre, entre, meu corajoso Soldado Souza, a autoridade de Exú, se aprochegue mais.
Ali o amarelo viu que tava numa roubada. Roque, Bola e Caniço seguravam o riso enquanto olhavam para ele. Nos olhos do Capitão Sampaio brilhava uma perigosa malícia. “Tomei na tabaca de chola”, pensou Souza.
- Soldado Souza – voltou a falar o Capitão enquanto pousava suas gordas mãos sobre os ombros do amarelo, por ser você o mais valente de meus operativos tenho uma missão para sua pessoa.
- Capitão, grato pelo palavrório mas...
- Sem mas, Souza, meu amigo... posso lhe chamar de amigo?
Souza anuiu com a cabeça achando aquela conversa cada vez mais estranha.
- Pois bem, meu amigo Souza, tenho uma missão para o meu melhor homem e sei que você pode realizá-la com perfeição. Trata-se de uma missão de vital importância para a manutenção da paz e harmonia de nossa querida Exú.
O que é um peido pra quem está cagado, pensou Souza enquanto balançava a cabeça afirmativamente. Caniço mostrava o sorriso sem dentes enquanto, discretamente, fazia um top-top com as mãos.
- Quero que você desça a baixa da égua, depois da Fazenda de Nhô Tinoco e vá buscar um meliante que se esconde por aquelas bandas.
“Oxe, mas o único que mora por aqueles lados é... “ e as pernas do amarelo fraquejaram na mesma hora. O Capitão não podia estar fazendo isso com ele. Ele se segurou na parede enquanto procurou uma cuia pra tomar um gole de água. Seus “amigos” de farda se dobravam de rir num canto enquanto o Capitão Sampaio tentava, a muito custo, manter a pose.
- Capitão, sabe o que é, eu disse na Dona Neca que ia investigar hoje quem roubou seu galo capão.
- Você vai.
- Eu fiquei de ir em Seu Tomé procurar o cabra que está mijando na plantação de palmas dele.
- Você vai, amarelo.
- Mas hoje é meu dia de varrer o posto.
- VOCÊ VAI, SOLDADO SOUZA.
- ...
- Você tem dois dias para voltar com o meliante. Caso contrário vai dormir no xadrez durante um bom tempo e não vai ser apenas durante o expediente.
Lascou. Soldado Souza, o amarelo, ia ter que buscar o TRANCA RUA.
O Tranca Rua era uma lenda por todo sertão pernambucano. O cabra tinha pra mais de dois metros de altura, forte como um touro e feio como bater em mãe. Ruim como a febre e bruto como caganeira depois de quermesse o Tranca Rua fez nome por nunca ter levado desaforo pra casa. Capaz de mastigar um prego e cuspir uma arruela, de parar um boi disparado com um único murro e comer 10 cachorros-quentes de estádio sem sequer dar um peido, ele era temido por qualquer ser vivente. Dizia-se que nem assombração tinha coragem de cruzar na frente dele. E o amarelo teria que prendê-lo.
No dia seguinte Soldado Souza saiu cedo de casa. Vestindo roupas civis e levando sua farda, algemas, a velha e enferrujada arma – que nunca fora usada, em uma trouxa pendurada no ombro. O sol mal tinha saído e Souza, o amarelo, já suava tanto que parecia derreter. Arrastava os pés, chutando a fina camada de poeira vermelha que cobria a estrada e alguns seixos enquanto arrastava as alpercatas. O amarelo não tinha a menor pressa. Não tinha pressa de morrer.
Chegando próximo a casa do meliante, Soldado Souza, agora apenas Souza, escondeu a trouxa por trás de um mandacaru e se aproximou da pequena casa perdida no meio do nada. O amarelo bateu palmas. Ô de casaaaaaaaaa...
Quase que o amarelo tem um troço. As pernas fraquejaram novamente. Tudo girou e escureceu quando ele viu a lapa de macho que surgia na porta da pequena casa. O cabra era tão grande que tinha que baixar a cabeça para passar na porta. Seus ombros não passavam pelo vão. Cada braço dele era maior que a cintura do amarelo. Feio? Você nunca viu nada feio se não olhou para a cara do Tranca Rua. E a voz dele estrondou.
- Quem ta aí?
- Aqui está o pobre amarelo, Dr., um pobre homem de paz necessitando de ajuda.
- Diga, ô amarelo, o que faz por essas bandas?
- O Dr. que me desculpe mas estava indo para Exú e a sede tomou conta desse pobre que lhe incomoda. Se o Dr. puder me conseguir uma cuia d’água.
- Água e um lugar pra mijar não se nega a nenhum cristão. Entre aí cabra.
E assim o amarelo se aproximou do Tranca Rua sem levantar suspeitas. E, como já havia dito, o Souza era um cabra boa praça, apesar de seus defeitos, e logo ganhou a confiança do gigante. Tranca Rua se sentia sozinho. Não era fácil ser o cabra mais perigoso do sertão pernambucano. Ter por perto um cabra engraçado como o amarelo não era nada mal. Os dois papearam, comeram e beberam durante todo o dia. No fim do dia o amarelo, bêbado como um gambá, dormiu próximo a soleira da sala, desmaiado no chão. No dia seguinte ajudou o Tranca Rua nos afazeres de sua pequena chácara, cozinhou um feijão para ele quanto papeava, fugindo do assunto toda vez que seu “amigo” perguntava o que ele fazia da vida.
Quando o dia começou a se por o amarelo desabou. Ele não ia ter coragem de dar voz de prisão pro Tranca Rua. Ele tinha visto com aqueles olhos que a terra há de comer o gigante bater pregos com a palma da mão. Viu ele derrubar uma goiabeira no tapa. Ele ia passar o resto da vida no Xadrez. Mas Tranca Rua sentiu que algo estranho acontecia com o novo amigo.
- Ô amarelo, que tu tem que está mais amarelo que de costume?
- Ô Tranca – ele já o chamava de forma carinhosa – é uma bronca, rapaz.
- Diga, homem, qual o problema. Diga que eu resolvo pra você.
- Eu até queria dizer mas... – e o amarelo começou a tremer mais que vara verde.
- Amarelo, tu vai contar. Por bem ou por mal.
Entre o fogo e a frigideira o amarelo contou. Contou tudo. Contou que por causa de uma manguaça bem tomada havia falado besteira e por causa disso o Capitão Sampaio havia mandando ele prender o homem mais perigoso do sertão. Contou que era um covarde moleirão cheio de conversa e que, neste tempo que estava ali, havia percebido que o Tranca era um cara legal. E que, mesmo que fosse homem pra isso – e ele não era – não teria coragem de prender o amigo. O jeito era se resignar com passar o resto dos dias em cana (e não na cana, como gostaria).
- Eu vou.
- Ah?
- Eu vou com você. Vou preso.
- Oxe, homem, endoideceu, foi?
- Não, to bom da moleira. Vou com você. Você me leva preso, e fica fora do xadrez. Com dois dias eu derrubo a parede da cadeia e volto pra casa. Assim eu descanso dois dias e você cumpre sua função.
- Tranca, tu faria isso por mim?
- Não é pra isso que servem os amigos? – concluiu o gigante enquanto deva um tapa nas costas do agora Soldado Souza que quase desmanchou o amarelo.
No dia seguinte acordaram com as galinhas e seguiram para Exú. Chegando perto da cidade pararam e Souza, que havia resgatado suas coisas ao saírem, vestiu a farda, bateu a poeira e assumiu ares de “Otoridade” mais uma vez. Tranca Rua colocou as mãos para trás e foi algemado pelo amarelo. Nestes idos tempos o posto policial ficava no fim da rua principal, a única rua calçada da cidade, ladeada de pequenas casinhas.
Tranca Rua foi andando na frente, seguido por Souza que, fazendo seu papel, segurava o velho 38 na mão. A medida que ia chegando as janelas iam se fechando. “Lá vem o Tranca Rua, corram para a caatinga” era só o bochicho que se ouvia. Devagar, a medida que se aproximavam, frestas entre as janelas iam se abrindo. Olhos curiosos espreitavam aquela cena inusitada. O amarelo, o soldado Souza, a “Otoridade” de Exú, vinha trazendo o Tranca Rua prisoneiro.
Então as janelas começaram a se escancarar. As pessoas se amontoavam nos vãos, descrentes do que viam. Enquanto seguiam a passos lentos, sobre o sol escaldante do meio-dia, o prefeito havia sido avisado e já esperava, junto ao incrédulo capitão Sampaio, em frente ao posto policial. Tranca Rua seguia tranqüilo, parecia nem perceber todos aqueles olhares. O Amarelo mal sentia as pernas, seguia lentamente, fazendo força para não desmaiar. Aí começou.
O povo de Exú começou a bater palmas. Viva o soldado Souza, o homem mais valente que pisou sobre o chão do sertão. Viva o Soldado Souza, o homem que se vivo naquele tempo teria prendido o próprio Virgulino. Seu Juca cutucava os clientes de seu bar “Ele bebe aqui, viu?”. E o amarelo foi desamarelando. Ao ouvir os gritos, os festejos, Souza, o soldado, foi se perdendo em sua falsa glória. Enchendo o peito, começou mesmo a se achar digno de tanta nota. Empertigou-se, ajeitou a farda, rodou o revolver entre os dedos e assumiu um andar que lembrava uma marcha.
Tranca Rua seguia tranqüilo, passo a passo, seguido pelo agora valoroso soldado Souza. Souza, por sua vez, já sentia maior e mais perigoso que o próprio Tranca Rua. Já passando em frente da pequena igrejinha, sob os olhares curiosos do padre e de suas beatas, Tranca Rua Tropeçou. A cidade foi as gargalhadas enquanto o gigante tentava recuperar o equilíbrio. Neste instante, cheio de si, Souza, o soldado, impulsionado por toda aquela ovação, encheu a mão.
Um violento tapa acertou o toutiço de Tranca Rua.
- ANDA FEITO HOMEM, MACHO BESTA. – gritou Souza em plenos pulmões para todos ouvirem, com um sorriso estampado no rosto.
Souza estava tão abestalhado com sua própria “conquista” que nem percebeu quando Tranca Rua partiu as algemas como se fossem de plástico. E Tranca Rua dobrou de tamanho. E as janelas se fecharam. E o prefeito sumiu. E o amarelo ficou branco.
E um tabefe certeiro, bem ali no pé do ouvido, derrubou o amarelo, fazendo-o rodar feito um pião e terminar estirado no chão. O amarelo nunca soube o que aconteceu depois, ninguém lhe contou e ele não teve coragem de perguntar. O capitão Sampaio, que teve a brilhante idéia, hoje não anda de tanto que apanhou do Tranca Rua e o Souza, que um dia foi soldado, hoje é mouco do ouvido e é cantador de mercado.
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